quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Não o acordem! Ele é tão infeliz quando...


Era uma orelha grande, bem grande, verde limão, deitada tranquilamente na calçada, em uma tarde extremamente quente, ar seco, o sentimento de algo enroscado na garganta, sobre a calçada (Rua Alagoas e Sabará) a grande orelha, em seu interior algo se mexia, também grande e peludo, com a pele coberta de sujeiras. Parei a bicicleta e contemplei a cena: o sol de inverno furando entre as poucas folhas das árvores e desenhando na calçada pequenas abstrações de luz, em meio às abstrações uma enorme orelha verde limão, tão real e natural que penso que Magritte passou por aqui, suas nuvens de pedra flutuando no céu, as maças tão grande quanto o desejo de pecar. Penso em correr à farmácia mais próxima e comprar cotonetes imensos para livrar a orelha do intruso. "Não o acordem, não lhe preguem peças, Ele é tão infeliz quando não está dormindo", a orelha foi se metamorfoseando em cadeira de balanço, depois em caracol e por fim em útero. Ele no interior da orelha alheio a tudo e a todos, balançando docemente com braços e pernas contraídas contra o corpo, em posição fetal. Virando a orelha, serviria como casco-casa, mas a sua finalidade lúdica era criar um simulacro do útero, deixar o Ser e voltar ao Não-Ser. "ao lado da sua cabeça, há duas penas. Se eles as viu antes de adormecer talvez sonhe que é um pássaro e que voa...", isso é Prévert e seu burro, é outra história, talvez ele sonhe que ouve Satie e ouvindo Satie sonhe que é um mendigo e que dorme dentro de um orelhão caído na calçada numa tarde de inverno com sol e folhas secas na calçada, sem documentos, sem contas a pagar, nada a receber, sem casa, sem familia, sem nome, tão isento de laços como no seu primeiro dia de natimorto.


Tela: Libertação - HD Expressionista